sábado, 7 de dezembro de 2013

13 de Maio de 2027, Abolição da Escravatura

A escrivaninha de mogno cuspia fumaça enquanto o barômetro fumava o barão. Nas lavouras de algodão, os cães latiam suas tristezas: no dia 13 de maio de 2027, a princesa Isabel assinou nas paredes de um edifício abandonado a abolição da escravatura. Depois de gerações sofrendo estavam libertos os que foram um dia escravizados, e os monumentos imóveis dessa terra observavam os nossos majestosos passos em direção ao futuro.

Os grandes capitães da indústria, retorcendo seus bigodes de feno, reuniram-se em um ginásio, sentados em cadeiras de plástico antes ocupadas por grandes garrafas que discutiam seus vícios. Os capitães, com suas carrancas desenhadas a giz-de-cera e seus chapéus do trapo mais fino, buscavam remediar o irremediável. Os carros haviam buzinado suas vontades: não mais haveria nessa terra gloriosa o horror da escravidão, que tanto manchava a nossa imagem internacional. Agora nós seríamos capazes de olhar para os convidados estrangeiros com a cabeça erguida e o sorriso confiante da nossa pureza. "O que é irremediável remediado está", cacarejou um dos capitães, e os outros o acompanharam: tudo se resolveria.

A nação convulsionava em festa. Os sóis sambavam todos e os céus marcavam o ritmo em suas latinhas de cerveja. Seríamos modernos! Armas e peixeiras, todas as classes de cidadãos se uniam nas ruas e cantavam a nossa grandeza nacional, a nossa hombridade individual, a nossa vitória humana. Os garçons serviam aos palácios coquetéis molotov, que tentavam seduzir as estruturas mais jovens - e de curvas mais acentuadas - com suas grandes vozes embargadas. As togas e perucas herdadas dos nossos pretéritos desejos brindavam à saúde e à eternidade do novo.

Fardados da bandeira, os condomínios marcharam pelas cidades das ruas. Corrigiram todos os nossos enganos com uma pichação e agora construíam todos essa poderosa alvorada esperada desde que Dom Sebastião pegou sua moto e fugiu para o fundo do espaço. Em algum firmamento, o lugar sorria para nós, e Deus, filho de um multimilionário falido com um torno mecânico, nos abençoava com seu silêncio aprovador.

Existiam, claro, os descrentes. Não viviam perseguidos, como imaginavam que aconteceria - nunca viveram numa ditadura, não iriam vivê-la agora. Os hereges, ao contrário, eram silenciosamente celebrados. Todas as placas que insistiam em acusar o suposto absurdo da nossa conquista - e o que teria de absurdo nisso tudo? - geravam a confirmação que precisavam: podem discordar de nós, já que toda unanimidade, afinal, é burra, como nos ensinou o nosso Velho Presidente e Grande Cidadão. Na nossa infinita festa, entrariam todos os cidadãos.

Então tinham os antigos escravos, barrados na entrada. Homens e mulheres, crianças e idosos, milhares, milhões de pessoas andavam sem direção pelas esquinas esquecidas de um país em polvorosa.

E o sol nasceria novamente no horizonte dos justos e dos bons.

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