domingo, 15 de dezembro de 2013

Sobre Deus

Seus olhos estavam presos às infinitas telas que se multiplicavam pelo firmamento. Por cada olhar, a vida de um que nascia e morria em imensuráveis milissegundos, o choque da existência inteira estendida e entendida por cada célula como impossivelmente única. Deus, possuidor de todas as coisas, sempre sentado na terceira estrela mais brilhante, nos olhava como quem nos sonhava, milhares, milhões de pixels acumulados em experiências preenchidas de memórias.  Ele nos conhecia como quem conhece o mecanismo mais simples, e seu sorriso despejava sobre nós bênçãos sobre bênçãos, sem que nós nunca em nenhum momento as pedíssemos.

Deus não tinha a misericórdia do homem superior. Ao contrário, sua misericórdia andava entre nós e abaixo de nós, nas lamas mais sujas e nos becos mais escuros. Deus sentando nas estrelas nunca nos olhou de cima; Deus era pura alteridade e só conhecia os caminhos do horizonte. Não conhecia o mais vil e mais mesquinho, ou o mais triste e mais derrotado; ele o era. Babava profanidades e gritava seu ódio no silêncio imóvel do espaço e, seguidamente, retratava-se, compreendendo que não havia premeditação no mal: nem sequer havia o mal. O que havia era o humano e a sua eterna admiração por ele. Nada lhe parecia mais verdadeiro do que um homem tolo, que tropeça nos próprios pés e finge andar sem embaraços.

Um dia uma nave passou à esquerda da estrela onde morava Deus. Observou-os com grande interesse e atenção. Os astronautas saíam em busca de - em ordem de importância - um lar, um parque de diversões e algumas respostas. No lugar de tudo isso, encontraram uma grande pergunta: quem é aquele na estrela? Para cada um, Deus apareceu diferente: um pai deitado em uma maca; um cachorro raivoso; uma avó contando histórias para seus netos; um genocida odiado; uma adolescente negra recitando seus poemas. Para Deus, todos eles eram absolutamente únicos, seus passados, futuros e presentes aglutinados em um momento no tempo e no espaço, um ponto de coerência em uma floresta de luzes caóticas.

Do encontro, nasceu o entendimento. Os astronautas, mesmo sem saberem, sabiam. Choravam e sorriam, vestidos em seus capacetes, e reconheciam. Não éramos mais crianças perdidas flutuando no vazio, ou grandes filhos das estrelas cheios de promessas e fadados ao fracasso. Éramos, sim, tudo o que era impossível, tudo que era novidade. A existência era o que já é velho e já é belo em seus próprios termos; nós éramos a inexistência, aquilo que tem que se provar e que, tentando se provar, já está provado. Sabíamos agora: Deus sorria para nós como também sorria para todas as outras coisas, e isso nos tornava especiais, como eram especiais todas as outras coisas.

Sentando em sua estrela, a terceira mais brilhante, Deus morria lentamente. Era agora conhecido por nós, e se seus olhos continuavam atentos, suas telas já não eram mais infinitas. A ternura de uma divindade que definha era a condição para a nossa existência: todo o dia o céu brilhava mais forte e o que era humano se tornava mais humano. Deus, no seu último dia, desceu da estrela e se deitou no corpo da Terra, carinhoso, sentindo tudo que fomos, somos e seremos correndo pela sua carne, brincando em suas formas que eram ao mesmo tempo retas e curvas. Seu corpo com o nosso foram se unindo lentamente, como uma reza, e fomos juntos nos espalhando. Quando o último humano se uniu à última parte divina, vivemos todas as nossas histórias e cantamos todas as nossas canções.

No dia que raiou, uma criança nasceu chorando e seus olhos estavam presos às infinitas telas que se multiplicavam pelo firmamento.

Ao nosso ancestral comum

ao nosso ancestral comum
que morreu sozinho
em um floresta qualquer
e que nos deixou de herança
essa tristeza de existir

ao nosso ancestral comum
que não falou palavra
e que não chorou lágrima
quando morreram teus pais
nas mãos do esquecimento

ao nosso ancestral comum
que agrediu seus pares
e descobriu o sexo
- descobriu as armas
e matou o seu redor

ao nosso ancestral comum
que incendiou a si mesmo
nos tempos dos deuses mortos
e destruiu as estátuas
para fazê-las novas

ao nosso ancestral comum
que virou a casca
da qual nasci
e que odiei
por me deixar sua marca

eu escrevo.

sábado, 7 de dezembro de 2013

13 de Maio de 2027, Abolição da Escravatura

A escrivaninha de mogno cuspia fumaça enquanto o barômetro fumava o barão. Nas lavouras de algodão, os cães latiam suas tristezas: no dia 13 de maio de 2027, a princesa Isabel assinou nas paredes de um edifício abandonado a abolição da escravatura. Depois de gerações sofrendo estavam libertos os que foram um dia escravizados, e os monumentos imóveis dessa terra observavam os nossos majestosos passos em direção ao futuro.

Os grandes capitães da indústria, retorcendo seus bigodes de feno, reuniram-se em um ginásio, sentados em cadeiras de plástico antes ocupadas por grandes garrafas que discutiam seus vícios. Os capitães, com suas carrancas desenhadas a giz-de-cera e seus chapéus do trapo mais fino, buscavam remediar o irremediável. Os carros haviam buzinado suas vontades: não mais haveria nessa terra gloriosa o horror da escravidão, que tanto manchava a nossa imagem internacional. Agora nós seríamos capazes de olhar para os convidados estrangeiros com a cabeça erguida e o sorriso confiante da nossa pureza. "O que é irremediável remediado está", cacarejou um dos capitães, e os outros o acompanharam: tudo se resolveria.

A nação convulsionava em festa. Os sóis sambavam todos e os céus marcavam o ritmo em suas latinhas de cerveja. Seríamos modernos! Armas e peixeiras, todas as classes de cidadãos se uniam nas ruas e cantavam a nossa grandeza nacional, a nossa hombridade individual, a nossa vitória humana. Os garçons serviam aos palácios coquetéis molotov, que tentavam seduzir as estruturas mais jovens - e de curvas mais acentuadas - com suas grandes vozes embargadas. As togas e perucas herdadas dos nossos pretéritos desejos brindavam à saúde e à eternidade do novo.

Fardados da bandeira, os condomínios marcharam pelas cidades das ruas. Corrigiram todos os nossos enganos com uma pichação e agora construíam todos essa poderosa alvorada esperada desde que Dom Sebastião pegou sua moto e fugiu para o fundo do espaço. Em algum firmamento, o lugar sorria para nós, e Deus, filho de um multimilionário falido com um torno mecânico, nos abençoava com seu silêncio aprovador.

Existiam, claro, os descrentes. Não viviam perseguidos, como imaginavam que aconteceria - nunca viveram numa ditadura, não iriam vivê-la agora. Os hereges, ao contrário, eram silenciosamente celebrados. Todas as placas que insistiam em acusar o suposto absurdo da nossa conquista - e o que teria de absurdo nisso tudo? - geravam a confirmação que precisavam: podem discordar de nós, já que toda unanimidade, afinal, é burra, como nos ensinou o nosso Velho Presidente e Grande Cidadão. Na nossa infinita festa, entrariam todos os cidadãos.

Então tinham os antigos escravos, barrados na entrada. Homens e mulheres, crianças e idosos, milhares, milhões de pessoas andavam sem direção pelas esquinas esquecidas de um país em polvorosa.

E o sol nasceria novamente no horizonte dos justos e dos bons.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Uma mulher.

existe muita beleza em tudo isso. olhamo-nos um ao outro, pupilas dilatadas, esquecidos. você dista de mim o exato comprimento de uma vida inteira. seus cabelos são mais curtos do que eu quereria, mas você não se ajoelha a mim, não, não. e se se ajoelha é por me ver fazer o mesmo. observo a sua mão que domina o movimento preciso de lançar-se ao mundo. seu sorriso é torto, com aquelas sacanagens que só quem viu e viveu é capaz, e a curva da sua bochecha cabe perfeitamente na curva da minha mão: ó quão semelhante estás.
eu te amo, minha irmã impossível, minha história mal contada. eu te amo, minha filha não gestada.
aproximo-me de ti com vontade de explorá-la, milimetricamente juntada por peles e dentes e ossos. seus olhos olham como meus olhos e seus seios me acusam como indicador algum acusou antes. meus dedos se aproximam do seu braço, que antes de tudo parece tão meu. já vi essa marca, já vi essa cicatriz… seus peitos mantém a acusação, e seu sorriso torto me entorta. passeio pelos teus vales e pelos, teus bens e teus males. eu já te vi algum outro dia? ou já caminhamos as mesmas veredas - e nos desencontramos em cada bifurcação? seu sorriso me lembra o meu sorriso e se teus peitos me acusam, te acusam os meus. e se seu pinto se desvia para a esquerda, é por confundir-se com aquele que é o meu.
eu te amo, minha indissociável. eu te amo, minha oposta. eu te amo, minha mesma. eu te amo, eu mesmo.