Deus não tinha a misericórdia do homem superior. Ao contrário, sua misericórdia andava entre nós e abaixo de nós, nas lamas mais sujas e nos becos mais escuros. Deus sentando nas estrelas nunca nos olhou de cima; Deus era pura alteridade e só conhecia os caminhos do horizonte. Não conhecia o mais vil e mais mesquinho, ou o mais triste e mais derrotado; ele o era. Babava profanidades e gritava seu ódio no silêncio imóvel do espaço e, seguidamente, retratava-se, compreendendo que não havia premeditação no mal: nem sequer havia o mal. O que havia era o humano e a sua eterna admiração por ele. Nada lhe parecia mais verdadeiro do que um homem tolo, que tropeça nos próprios pés e finge andar sem embaraços.
Um dia uma nave passou à esquerda da estrela onde morava Deus. Observou-os com grande interesse e atenção. Os astronautas saíam em busca de - em ordem de importância - um lar, um parque de diversões e algumas respostas. No lugar de tudo isso, encontraram uma grande pergunta: quem é aquele na estrela? Para cada um, Deus apareceu diferente: um pai deitado em uma maca; um cachorro raivoso; uma avó contando histórias para seus netos; um genocida odiado; uma adolescente negra recitando seus poemas. Para Deus, todos eles eram absolutamente únicos, seus passados, futuros e presentes aglutinados em um momento no tempo e no espaço, um ponto de coerência em uma floresta de luzes caóticas.
Do encontro, nasceu o entendimento. Os astronautas, mesmo sem saberem, sabiam. Choravam e sorriam, vestidos em seus capacetes, e reconheciam. Não éramos mais crianças perdidas flutuando no vazio, ou grandes filhos das estrelas cheios de promessas e fadados ao fracasso. Éramos, sim, tudo o que era impossível, tudo que era novidade. A existência era o que já é velho e já é belo em seus próprios termos; nós éramos a inexistência, aquilo que tem que se provar e que, tentando se provar, já está provado. Sabíamos agora: Deus sorria para nós como também sorria para todas as outras coisas, e isso nos tornava especiais, como eram especiais todas as outras coisas.
Sentando em sua estrela, a terceira mais brilhante, Deus morria lentamente. Era agora conhecido por nós, e se seus olhos continuavam atentos, suas telas já não eram mais infinitas. A ternura de uma divindade que definha era a condição para a nossa existência: todo o dia o céu brilhava mais forte e o que era humano se tornava mais humano. Deus, no seu último dia, desceu da estrela e se deitou no corpo da Terra, carinhoso, sentindo tudo que fomos, somos e seremos correndo pela sua carne, brincando em suas formas que eram ao mesmo tempo retas e curvas. Seu corpo com o nosso foram se unindo lentamente, como uma reza, e fomos juntos nos espalhando. Quando o último humano se uniu à última parte divina, vivemos todas as nossas histórias e cantamos todas as nossas canções.
No dia que raiou, uma criança nasceu chorando e seus olhos estavam presos às infinitas telas que se multiplicavam pelo firmamento.